🌧️ A pergunta que não quer calar
Será que você vai passar por essa tragédia novamente? Será que sua casa será novamente invadida por uma enchente?
Como moradora do Parque Mambucaba, conheço profundamente as dores e realidades de quem vive aqui. Não basta dizer que as pessoas devem “ser retiradas” dessas áreas. Essa não é uma solução viável — nem emocional, nem cultural, tampouco econômica. Pergunte a qualquer morador que construiu sua casa com sacrifício, o que ele faz após viver sua primeira enchente. A resposta, na maioria das vezes, é: eleva a construção. Casas com elevações superiores a um metro, antes mesmo do térreo, são comuns nas regiões mais baixas do bairro. É uma resposta prática e simbólica de resistência.
Quem tem casas alugadas, por vezes, consegue se mudar. Mas não são todos. Uma pergunta frequente para quem busca alugar por aqui é: “Vai água nessa casa?” E a resposta costuma vir acompanhada de um histórico: “Já faz muitos anos que não dá enchente aqui”. Isso cria um falso senso de segurança.
🚨 O aviso veio, mas por que muitos não saíram?
Desta vez, a Defesa Civil emitiu diversos alertas sobre o volume de chuva e a necessidade de evacuação. Escolas municipais suspenderam as aulas já na sexta-feira, dia 4, para evitar maiores transtornos. Era um aviso claro de que algo grave estava prestes a acontecer. No entanto, nem todos os estabelecimentos aderiram à recomendação. Minha filha mais velha, por exemplo, saiu do trabalho tarde da noite, chegando poucas horas antes da enchente. Como muitos outros moradores, não teve tempo de se preparar para o que viria. Felizmente, está bem.
Então fica a pergunta: se não foi por falta de aviso, o que leva alguém a permanecer em casa até o momento em que já não é mais possível sair por conta própria?
A psicanálise nos ajuda a compreender esse comportamento. Muitas vezes, trata-se de uma negação inconsciente como forma de autoproteção: a pessoa acredita, sinceramente, que “não vai acontecer de novo”. Outras vezes, é o trauma passado que paralisa, impede de reagir e até mesmo de pegar documentos. Há também a identificação simbólica com a casa, vista como extensão de si, tornando a ideia de abandono emocionalmente impossível. Apego aos bens, que carregam memórias e história, e a ilusão de controle, aquela sensação de que “dessa vez vou conseguir segurar as pontas”, completam esse cenário de resistência silenciosa.
🌍 A enchente não é só a chuva
A maioria das pessoas associa enchente apenas a chuvas intensas. Mas a realidade é mais complexa — ainda mais agora, com os efeitos das mudanças climáticas se intensificando.
As enchentes são o resultado de uma combinação de fatores: calor extremo, períodos de seca prolongados seguidos por tempestades violentas, solo degradado e falta de infraestrutura urbana. O desmatamento, a impermeabilização das ruas, o lixo acumulado nos bueiros e o assoreamento dos rios agravam a situação. E, como se não bastasse, temos o descaso histórico com o planejamento urbano. Parece até que esquecemos o que aprendemos nas aulas de Ciências do ensino fundamental: o ciclo da água, a importância da vegetação, o papel do solo em absorver as chuvas.
Minha filha participou de uma Feira Cultural recentemente cujo tema era justamente Desastres Ambientais. As crianças explicavam direitinho o ciclo da chuva e os efeitos da degradação ambiental. Fico me perguntando: se até elas entendem, por que os nossos governantes só agem quando tudo já está destruído? De que adianta liberar um auxílio emergencial de R$ 3 mil se a tragédia vai se repetir no ano seguinte?
🧭 E se começássemos por nós mesmos?
Este ano, a tragédia foi maior, mas também foi maior o apoio popular. A mobilização comunitária foi linda. Mesmo quem não foi atingido diretamente sentiu na pele a dor do outro. Porque, se a casa do vizinho encheu, não está tudo bem. Só estará quando todos tiverem o mínimo de dignidade.
As igrejas foram incansáveis, os pontos de arrecadação multiplicaram-se, e vimos uma verdadeira corrente de solidariedade tomando conta do bairro. Mas precisamos mais do que ajuda pontual — precisamos de organização coletiva e preventiva.
Um bom começo seria criar mapas simples (em papel ou digital) indicando:
- Onde a água sobe primeiro
- Quais são as saídas seguras
- Onde estão os pontos de encontro protegidos (como escolas, igrejas ou quadras cobertas), que precisam estar equipados com chaves acessíveis, água potável, cobertores e colchonetes.
Precisamos também pensar em quem mais precisa. Um cadastro comunitário de vulneráveis pode salvar vidas. Idosos, pessoas com deficiência, moradores sozinhos ou com crianças pequenas — todos devem ser identificados e conectados a uma “dupla de cuidado”, um vizinho ou amiga que seja responsável por ajudá-los em caso de evacuação.
📢 Comunicação e apoio: o que funcionou e o que pode melhorar
Um ponto forte dessa crise foi o uso dos grupos de WhatsApp já existentes, especialmente os de vendas e comércio local. Eles foram cruciais para alertar sobre a subida da água, pedir ajuda e compartilhar informações confiáveis. Mas e se acabarem a luz e a internet?
Sugestões simples podem salvar vidas. Um sistema de sinalização entre vizinhos pode incluir:
- Panos vermelhos na porta = ajuda urgente
- Panos brancos = todos seguros
- Buzinas curtas e repetidas = evacuação imediata
Você tem alguma outra ideia que possa funcionar sem internet? Essa é uma discussão que vale ser feita nas ruas, nas igrejas, nas escolas. Comunicação salva.
Além disso, precisamos de estratégias para apoiar os desabrigados. Casas com dois andares ou que não foram atingidas podem acolher famílias temporariamente. É preciso também organizar pontos fixos para doações, com alimentos, roupas e produtos de higiene, armazenados em prateleiras altas. Outro passo importante é organizar mutirões para refazer documentos perdidos, com apoio da Defensoria Pública ou de ONGs.
E que tal promover treinamentos comunitários? Ensinar, de forma simples, como agir em uma emergência: quanto tempo você tem para sair, pra onde ir, como ajudar o outro.
🌱 Conclusão: esperança que age, não espera
É verdade, a enchente devastou parte do nosso bairro. Muitos perderam móveis, documentos, memórias. Mas o que ela não levou foi nossa força comunitária.
Precisamos transformar a dor em ação, o medo em preparo, a tristeza em união. O que vivemos nos ensina que o tempo de esperar pelas autoridades já passou. Não podemos controlar a chuva, mas podemos controlar nossa capacidade de nos organizarmos, nos protegermos e cuidarmos uns dos outros.
Que essa tragédia seja um ponto de virada. Que as iniciativas aqui descritas se multipliquem. Que a solidariedade que vimos nas ruas se transforme em políticas públicas sustentadas por nossa voz coletiva. Porque se o risco permanece, a esperança também. E ela só se realiza quando se transforma em atitude.
Raquel vc e incrível, com ideias brilhantes parabéns, concordo plenamente com vc
Oi Vanda, querida amiga, nós passamos por toda essa dor. Temos que progredir. Obrigada pela sua visita em meu site. Um grande abraço.
Raquel